No calendário cristão, o Carnaval corresponde a um curto período de diversão, que precede um longo tempo de penitência, própria da Quaresma. Etimologicamente, o termo Carnaval deriva da expressão latina “carne, vale!”, que significa “adeus carne”. Assim, equivale a uma orgia do consumo, que prepara os corpos para as abstinências e os jejuns da era quaresmal. No entanto, mais do que a glorificação da matéria, o Carnaval significa a celebração da alegria, que antecede a observação do luto, movida pelo martírio da dor. Por isso, em três dias de festejos, a sociedade admite todos os excessos, inclusivamente a inversão das funções e dos comportamentos, que constitui uma espécie de compensação pelas agruras de um quotidiano monótono, conformado e injusto. Neste caso, a dança e a máscara representam os principais, meios da exteriorização do contentamento e da obtenção do disfarce.
Na Terceira, sobretudo na área do Ramo Grande, a cultura local evidencia o enraizamento e a genuinidade dos festejos de Carnaval, que também aqui celebram a abundância e a alegria. De facto, o estudo da culinária tradicional demonstra o resguardo prévio de alimentos mais ricos e apetecidos, que asseguram a exteriorização da fartura. Entre eles, destacamos a carne e os derivados de porco, os ovos e o açúcar, utilizados na confecção de cozinhados e iguarias. Assim, no seio da família, a relativa proximidade das matanças possibilita o fornecimento dos ingredientes, que facultam a melhoria das refeições. Na relação com os outros, os ovos, o açúcar e as bebidas caseiras permitem a preparação e a decoração das mesas, onde sobressaem as filhós, os coscorões, as queijadas, as bolachas, os suspiros, os rebuçados e os licores e aguardentes, que aguardam pela entrada das visitas. No entanto, é a análise das manifestações teatrais populares que melhor exprime o arraigamento e a originalidade da comemoração do Entrudo, que transborda de grande animação. Com efeito, durante três dias, a exibição de danças converte as freguesias rurais terceirenses numa espécie de majestoso palco que, no dizer de José Noronha Bretão, acolhe o maior festival de teatro popular em língua portuguesa dos Açores, de Portugal e quiçá do Mundo.
A expressão das danças de Carnaval na cultura açoriana, particularmente na ilha Terceira, move o empenho dos estudiosos, tendente à descoberta das suas raízes. Apesar do predomínio das incertezas, a análise das crónicas demonstra a disseminação de bailados, praticamente por todo o arquipélago, desde a era do povoamento. Assim, enraízam decerto em formas do teatro português coevo, que evidenciam sinais de progresso, proclamadores da revolução vicentina. Além disso, recebem talvez a influência dos demais povos participantes da primitiva ocupação insular e, sobretudo, o posterior e inequívoco concurso dos costumes ultramarinos, nomeadamente os de ascendência afro-brasileira. Todavia, até ao século XIX, não ressalta a fixação de tais folias na quadra carnavalesca nem a peculiaridade das suas manifestações terceirenses.
Na Terceira, as danças de Carnaval de hoje constituem uma manifestação festiva efectivamente genuína, isto apesar da incorporação de influências artísticas externas e da derivação de coreografias locais muito antigas. De facto, a fixação do actual modelo ocorre no fim do século XIX e no primeiro terço do século XX, mormente nas décadas de 1920 e de 1930, e acontece na zona do Ramo Grande, muito por obra de dois autores da Vila Nova, Joaquim Sales (Farôpa) e Francisco Luís Melo (Chico Roico). É a partir daqui que a dança se desenvolve fundamentalmente em torno de um enredo, tratado entre a saudação e a despedida, que relega as marchas coreográficas para uma função acessória, tanto no seio da própria dança, como no confronto com os bailados de outrora. É também nesta época que se individualizam os diversos tipos de dança, sobretudo a de dia, ou de espada, e a da noite, ou de pandeiro. É ainda nesta altura que, por excelência, as danças se convertem em folguedo de Carnaval.
A fixação do modelo das actuais danças de Carnaval sempre comporta, como já referimos, o reconhecimento de diversos tipos. Entre eles, relevam a dança de dia, ou de espada, cujo nome decorre da preparação para uma exibição diurna e do método de direcção utilizado pelo mestre ou puxador, mais complexa e asseada, com maior número de elementos e maior diferenciação entre dançarinos, personagens e músicos, que trata de temas sérios, por exemplo, históricos, religiosos ou dramáticos, e a dança da noite ou de pandeiro, cujo nome decorre da preparação para uma exibição nocturna e do método de direcção utilizado pelo mestre ou puxador, menos complexa e asseada, com menor número de elementos e menor diferenciação entre dançarinos, personagens e músicos, que trata de temas leves, geralmente humorísticos. Paralelamente, ensaiam-se as comédias, apontamentos teatrais muito singelos, que abordam em tom jocoso questões do quotidiano, entre as quais sobressaem as tramas judiciais e a vida familiar. Mais recentemente, já nos anos assenta, surgem ainda os bailinhos, uma derivação mais ligeira da dança de noite ou de pandeiro, constituída por um menor número de elementos, que também versa sobre matéria satírica, cujo mestre ou puxador empunha uma simples batuta. Em vez de expediente de degeneração dos folguedos carnavalescos, os bailinhos equivalem antes a um meio de revitalização da festa, pois possibilitam a participação de mais gente, com menor dispêndio de tempo e de dinheiro.
A exibição das danças de Carnaval ocorre inicialmente durante o dia, em terreiros ao ar livre, sobretudo em largos públicos e em ruas de muitas casas rurais. Porém, no decurso do tempo, a apresentação converte-se também em espectáculo nocturno, interpretado em lojas espaçosas de moradias particulares ou em salões improvisados, como sucede nas Lajes até muito recentemente, por exemplo, em dependências da fábrica da chicória, na Ribeira dos Pães, e do secador do tabaco, no Cabouco dos Ventos. Todavia, a verdadeira transformação do Carnaval em festival de noite, ainda por cima exibido em palco, resulta da construção das sociedades recreativas e da distribuição da energia eléctrica, fenómenos que nas Lajes se concretizam entre as décadas de 1930 e 1950. A partir de então, os folguedos carnavalescos convergem para os novos recintos apinhadíssimos de gente, que se tornam quase exclusivamente nos cenários de espera e de representação.
Na Terceira, como já disse, o Carnaval nas no Ramo Grande no primeiro terço do século XX. No entanto, o desenvolvimento dos transportes depressa o transforma em festejo de toda a ilha. Do mesmo modo, o surto da emigração converte-o também em manifestação das comunidades terceirenses residentes no estrangeiro, sobretudo nos Estados Unidos e no Canadá. Nestas circunstâncias, o Entrudo corresponde à festividade mais genuína da Terceira. Com efeito, comemora-se dentro e fora da ilha e sobretudo em verdadeira união na sequência da circulação de danças entre o meio local e os destinos migratórios, a partir sensivelmente da década de oitenta, fruto da intensificação das comunicações e da melhoria das condições de vida. Além disso, o Carnaval constitui a tradição festiva que evidencia maior capacidade de continuação, em virtude da adequação aos sinais do tempo, que faculta a renovação. De facto, a penetração nos ambientes urbanos e o alargamento à participação das mulheres conferem à festa um vigor incontestável.
As Lajes, pela sua extensão, convertem-se desde muito cedo no principal viveiro de danças de Entrudo do Ramo Grande e da própria ilha Terceira. Aliás, muitas são até escritas por autores lajenses, por exemplo, Francisco Rodrigues de Lima (O Gaitada), António Homem, Francisco Martins da Silva e, mais recentemente, Hélio Costa, decerto o maior fazedor de danças de todos os tempos, com várias centenas de assuntos criados desde 1985. De facto, em todos os anos, a freguesia ensaia e apresenta um grande número de folguedos carnavalescos de diversas modalidades, nomeadamente danças de dia ou de espada, danças da noite ou de pandeiro e bailinhos. Assim, sensivelmente a partir do Natal, começa o entusiasmo, que inclui a confecção da indumentária e a realização dos ensaios, tudo antes da apoteose das três noites, que decorrem entre o Domingo Gordo e a terça-feira de Carnaval.
No Entrudo, a desculpabilização dos excessos ainda coexiste com alguma vigilância institucional, por vezes, dos poderes públicos e, quase sempre, das autoridades eclesiásticas. No tempo do Estado Novo, a censura oficial efectua um exame prévio das letras de todas as danças, sobejando os exemplos de cortes e proibições. A comprová-lo, em 1972, nas Lajes, relembre-se a interdição da dança da Cimeira, por pretensamente atentar contra a dignidade do Presidente do Concelho, que em Dezembro de 1971 acolhera na Terceira os presidentes dos Estados Unidos e da França. A Igreja, no propósito da morigeração dos costumes, também intenta a moderação dos folguedos carnavalescos. Assim, reprova os desmandos de linguagem, que ferem a moralidade, os gastos com indumentária, que afrontam a pobreza, e até a repetição de danças na Páscoa, que consome a Quaresma em ensaios e deslustra as celebrações religiosas do domingo da Ressurreição. Nas Lajes, o boletim paroquial é, ao longo de alguns anos, o principal arauto destas preocupações. De facto, na “Página da Juventude” da edição de 21 de Fevereiro de 1970, até se sugere a introdução de alterações formais no modelo tradicional das danças de Carnaval, designadamente a supressão da obrigatoriedade da rima, pelo menos na narrativa do enredo. Apesar dos intentos mais ou menos velados de temperamento dos festejos, o povo persiste na defesa da liberdade e da tradição. Apontemos alguns exemplos. Após o 25 de Abril, a dança da Cimeira, como já se disse, é logo reposta no Entrudo de 1975. Aliás, a revolução favorece o revigoramento das comemorações carnavalescas, pois admite a crítica, que possibilita a multiplicação dos assuntos. Do mesmo modo, no Semeador, por curiosidade também no exemplar de 25 de Abril, mas de 1970, um paroquiano devidamente identificado insurge-se contra as propostas de transformação do figurino das danças, defendendo a opulência das vestes, que promove o decoro das representações, e a manutenção da rima, que respeita a herança do passado.
A apresentação de danças de Carnaval na Páscoa constitui uma derradeira prova do seu enraizamento na cultura popular terceirense. Com efeito, volvido o luto quaresmal, a repetição dos folguedos carnavalescos no domingo da Ressureição equivale, uma vez mais, à melhor forma de exteriorização da alegria. Ainda assim, prepondera agora a exibição de danças de dia ou de espada, algumas até propositadamente ensaiadas para o efeito e sempre tidas por mais adequadas ao espírito da época, em conformidade com a tradição cristã. No passado, ou seja antes da transformação do automóvel em acessório da generalidade das famílias, organizam-se normalmente passeio sem autocarro, que no dia de Páscoa dão a volta à ilha em acompanhamento das danças. Em 1970, por exemplo, quando há duas danças de dias nas Lajes, pertencentes às sociedades Velha e Nova, o Semeador anuncia em 21 de Março a abertura de inscrições para a realização das excursões pascais. Hoje, a prática mantém-se, embora adequada às novas realidades, que decorrem muito da difusão dos carros particulares, naturalmente transformados nos meios de transporte por excelência.